quarta-feira, 10 de julho de 2013

DOM BOSCO E OS TEMPOS

  Nos já longínquos idos de 1960, realizou-se no Recife o 1 °  Encontro Inspetorial dos Cooperadores Salesianos, tendo por lema “Com Dom Bosco e com os tempos”. Nosso país está vivendo nesses dias o impacto das novas leis sobre horário de trabalho das empregadas domésticas, que eram outrora carinhosamente chamadas de “secretárias do lar”.
       A situação dos trabalhadores na incipiente indústria da Turim da metade do século 19 era cruel e desumana. Os patrões exigiam 14 até 16 horas de trabalho diário de uma semana de seis dias. Com frequência, desrespeitavam feriados e dias santos da Igreja. Exemplo gritante dessa situação foi a lei de 1886, já perto da morte de Dom Bosco que, com resistência de alguns industriais, fixou como idade mínima para trabalhar numa fábrica nove anos de idade!
        Há notável documento manuscrito, do qual possuo cópia parcial, conservado no Arquivo Salesiano de Roma, que os estudiosos da vida de Dom Bosco não hesitam em considerá-lo como o primeiro contrato de trabalho da história do sindicalismo operário.
        Diz o documento: “Pela presente escritura, realizada na Casa do Oratório de S. Francisco de Sales, em Turim, fica acordado o seguinte: O Sr. José Bertolino, mestre carpinteiro, aceita na qualidade de aprendiz, o jovem José Odasso e se compromete a ensinar-lhe a referida arte pelo espaço de 2 anos, a começar no início do corrente anos, e dar ao mesmo conselhos oportunos e salutares em relação à sua conduta moral e cívica, como faria um bom pai ao seu filho. Declara formalmente o supramencionado Mestre que se compromete a deixar totalmente livres os dias festivos do ano para que o aprendiz possa comparecer às funções religiosas do referido Oratório. O supramencionado Mestre se obriga a pagar semanalmente ao aprendiz a importância que foi combinada, isto é, 30 centésimos por dia nos seis primeiros meses, 40 centésimos no segundo semestre, e 60 centésimos a partir do primeiro dia de 1853 até o final do curso. O jovem Odasso compromete-se, por todo o tempo de aprendizado, a prestar seu serviço ao referido Mestre com prontidão, assiduidade e atenção, e ser dócil, respeitoso e obediente, como convém a um bom aprendiz.
        Conclui o curioso documento: “Prometem os contratantes, cada um por sua parte, atender e observar exatamente o referido, sob pena de ressarcimento de danos”. É datado de 8 de fevereiro de 1852.
         O contrato, além de fixar a duração do curso e progressivo aumento do salário, estabelecia também que o jovem aprendiz só poderia ser empregado em trabalho de seu ofício, nunca superior às suas forças físicas; os domingos e festas seriam dias de repouso e cada ano o jovem teria 15 dias de férias.
         Tais condições, para o tempo em que foi estipulado este contrato, representam grande passo nas conquistas dos direitos sociais dos jovens trabalhadores e são de grande significado por terem brotado, como absoluta novidade para os tempos, da mente e do coração de um santo educador.


SANTO – é propaganda?

               Após as recentes beatificações e canonizações de santos brasileiros – e já era tempo para isso – está havendo verdadeira onda de dioceses e congregações religiosas, querendo a todo custo a beatificação de seus bispos e fundadores. É ótimo como modelos de santidade a serem apresentados para estímulo e imitação do Povo de Deus. Mas, agora vem a pergunta: “E basta a propaganda?”
               Em primeiro lugar, a Igreja faz exame minucioso de todos os livros, escritos e pronunciamentos do candidato à honra dos altares. Diante de um tribunal, especialmente criado na diocese, testemunhas, cuidadosamente selecionadas, atestam sob juramento que o servo de Deus – assim é o nome jurídico que ele assume ao iniciar-se a causa – praticou em grau heroico as virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade, e as chamadas virtudes cardeais, prudência, justiça, fortaleza e temperança. Tal processo, uma vez concluído favoravelmente, é remetido a Roma, onde uma Congregação específica, a Congregação para as Causas dos Santos, conforme as normas da Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister de 1983, reexamina todo o processo diocesano. Com o feliz encerramento do processo apostólico, o Servo de Deus recebe o título de Venerável. Passa-se então ao exame dos milagres obtidos por sua intercessão. São geralmente curas com duas características fundamentais: terem sido recebidas pela invocação exclusiva do candidato e não terem nenhuma  explicação científica possível. Há uma junta médica em Roma, que examina cada caso apresentado. Hoje a legislação exige um milagre para a beatificação e outro para a canonização. Antes, eram dois para cada etapa da causa. O Papa, é claro, tem poder para dispensar o candidato dessa exigência, como fez agora o Papa Francisco relativamente ao beato João XXIII.
               Tive em minha vida duas experiências negativas a esse propósito. Procurei dissuadir o superior geral de uma congregação brasileira de iniciar o processo de beatificação de seu fundador, do qual fui uma espécie de secretário. Apesar de ser homem notável por suas realizações – e mais ainda por suas criações, até de uma língua - escreveu um livro com expressões pouco cristãs, referentes a uma nacionalidade. Também quando jovem seminarista, ouvi de certo missionário músico, que perdera o concurso para escolha do hino de um congresso eucarístico, a afirmação: “Não é nada perder, mas perder para um time de segunda categoria”... Tal expressão me pareceu extremamente vaidosa. E sua causa de beatificação está seguindo em nível diocesano... A uma superiora de congregação religiosa brasileira, informei que me recusava a depor na causa de seu Fundador, apesar de admirá-lo muito e ser seu amigo, mas não acho que ele praticou virtudes em grau heroico.
               No Nordeste salesiano, temos o Arcebispo de Fortaleza, Dom Antônio Lustosa, que João Paulo II na capital cearense proclamou “ santo e sábio Arcebispo”. Pena que tal afirmação particular do Papa não vale como declaração canônica de santidade...
               Convivi em S. José dos Campos, de 1947 a 1949, com um verdadeiro santo: o Venerável Pe. Rodolfo Komorek. Sua causa em Roma foi concluída com pleno êxito. Depus em três tardes diante do tribunal diocesano de Taubaté  e depois, tive a alegria de ler as sentenças dos nove juízes romanos, todas elas entusiasticamente favoráveis à declaração de santidade do “padre santo”, como era chamado Padre Rodolfo em vida. A sentença final, favorável, é de 29 de novembro de 1994, assinada pelo Mons. Sandro Corradini, o Promotor da Fé, que leva no vulgo o nome  de “advogado do diabo”, porque tem por missão procurar possíveis defeitos na vida do candidato aos altares. Só falta agora o milagre.

               Daí se vê que não é a propaganda que faz o Santo na Igreja, embora ela seja necessária, e até imprescindível, para que a vida e as virtudes do candidato sejam conhecidas pelo povo de Deus e possa ele ser invocado como intercessor nas necessidades. Talvez seja isso que esteja faltando no processo do “padre santo” de São José dos Campos e do arcebispo “sábio e santo” de Fortaleza... 

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O QUE VI NO PADRE RODOLFO

 Conferência no Centenário de nascimento do Padre Rodolfo



1.Introdução


A 25 de agosto de 1947, escrevia o Pe. Rodolfo Komórek uma carta ao seu conterrâneo Pe. José Piasek, que se encontrava em Araxá ( Estado de Minas), dando notícias dos salesianos da Residência de repouso de São José dos Campos. A certa altura, informa: “Estão aqui também Pe. Romeu Wenclawek, de Bagé, e um Sr. Clérigo da província nortista, Edvaldo. Este último, chegado do Recife, parece o mais fraco; os outros, creio, estão melhorando vagarosamente.”


Excelência Reverendíssima, Salesianos, meus irmãos,
Amigos e admiradores do Pe. Rodolfo,

É este clérigo, “o mais fraco” que, passados 43 anos, aqui está para vos dar, com júbilo de alma e alegria de coração, o seu testemunho pessoal sobre a extraordinária figura do Pe. Rodolfo Komórek, salesiano polonês, falecido nesta cidade a 11 de dezembro de 1949 e cujo centenário de nascimento hoje estamos aqui a celebrar.

2.Testemunho pessoal

     Nos “Lusíadas”, Camões apresenta a discutida figura do velho do Restelo que, no cais do porto, apostrofa as caravelas que partiam para a epopéia do Descobrimento. E dele observa o grande bardo lusitano que possuía
      “ o saber só de experiências feito...”
          ( Lusíadas, canto IV, estr.94)

Sem desprezar o muito que já se escreveu sobre o Padre Rodolfo, eu quereria nesta minha despretensiosa palestra, cingir-me quase exclusivamente à minha experiência pessoal. Afora alguma declaração sua em cartas, pretendo apenas transmitir o que vi, o que observei e ouvi do Pe. Komórek nos três últimos anos  de sua vida.
São fatos que falam por si.




3.Meu conhecimento do Pe. Rodolfo.

         Conheci o Padre Rodolfo em um momento privilegiado da sua e da minha existência. Eram os anos 1947-1949. Eu era um jovem seminarista salesiano, com 20 a 22 anos, estudante de filosofia, atingido, embora não gravemente, pela doença que naqueles anos trazia tanta gente a São José dos Campos.
         Para mim, foi um grande enriquecimento na minha formação sacerdotal e religiosa o testemunho de um santo, vivo e perto de mim.
         Para o Padre Rodolfo, aqueles foram os anos finais de sua caminhada para a santidade. Brilharam então de forma esplendorosa seu total despojamento de si próprio e sua heróica doação aos outros, sobretudo os doentes, os pobres e os necessitados de toda espécie.
         Posso desde já sintetizar a figura admirável do Pe. Rodolfo nesta expressão: “Foi um homem todo de Deus, todo doado aos irmãos.” Nada buscou para si, nada reteve para si. Extraordinária sua mortificação da gula e no desprezo pelo mínimo conforto, que o repouso por motivo da doença estaria a exigir. Sua postura na igreja, seus comentários aos acontecimentos do dia a dia, sua palavra de conforto ou de orientação, em qualquer circunstância, revelavam sempre um grande espírito de fé e uma existência voltada unicamente para o sobrenatural e para a vida eterna.  Pe. Rodolfo nos deixava a impressão de viver sempre na presença de Deus e julgar todas as coisas à luz do divino.
         Pe. Rodolfo recusou-se a ensinar-me polonês. Queria, ao contrário, ensinar-me astronomia e aprender a distinguir, no céu estrelado, as constelações do firmamento. Talvez, um símbolo. Ele não me queria ensinar a língua dos homens, mas revelar-me as coisas do céu.
         À sua morte, ante seus restos mortais, na capelinha de nossa Residência, eu pedi ingenuamente a Deus que me passasse o seu conhecimento das línguas, que não era pequeno, que eu tanto ambicionava e que para ele eram já inúteis àquela altura.
         Hoje, eu me recomendo à sua poderosa intercessão junto de Deus para que me conceda, em minha vida de bispo, sua fé viva , sua decisão inabalável no caminho da perfeição religiosa e um pouco ao menos de seu devotamento e dedicação para os outros.


4.Ângulo de visão

      Para entendermos a figura do Pe. Rodolfo, sem riscos de perigosas distorções e lamentáveis equívocos, é mister colocarmo-nos num ângulo de visão correto, a fim de que daí possamos  devidamente aquilatar sua dimensão de herói da santidade.
      Há o perigo de vermos somente aspectos episódicos, convertidos em humorismo e até resvalando para o ridículo.
      Como já fiz em meu depoimento no processo diocesano de beatificação, aqui, em S. José dos Campos, em 1964, tentarei resumir a vida do Pe. Rodolfo na concretização do princípio estabelecido na “Imitação de Cristo”:
      “Quanto mais é oprimida e domada a natureza, tanto maior graça é infundida, e tanto mais cada dia é renovado o homem interior, conforme a imagem de Deus.”
      Toda a vida do Pe. Rodolfo Komórek se resume nesta frase: o completo esmagamento da natureza, em seus movimentos depravados, pela força da graça.
      O que nos descreve a Imitação no capítulo 54 do livro III realizou-se na vida do Pe. Komorek de maneira admirável e, sem dúvida, atingiu o máximo nos seus últimos anos.


5.Primeiro encontro

Conheci-o no dia 15 de abril de 1947, quando cheguei a São José dos Campos. Depois da sua habitual saudação “Laudetur Jesus Christus”, levou-me a visitar um nosso irmão velhinho, que se achava paralítico no leito e veio a falecer dois meses depois, Pe. Manoel Collazzo. Foi o seu primeiro ato de caridade que presenciei. Era edificante vê-lo procurar auxiliar este nosso irmão com grande bondade, fazer com ele novenas a São José para o seu restabelecimento, já considerado impossível. Já antes de recolher-se ao leito pela paralisia, este nosso pobre irmão por doença mental conservava um absoluto mutismo. O Pe. Rodolfo procurava entretê-lo nas recreações, fazendo-lhe companhia e falando-lhe, sem receber dele quase nenhuma resposta.

6. Pobreza e penitência

         A primeira  impressão que dava o Pe. Komorek a quem o encontrava era a de um austero penitente. Sua magreza naqueles anos era extrema, seu porte modestíssimo e castigado, suas palavras raras e bem medidas. Ao mínimo esforço, percebia-se seu arfar cansado. Sua vida, fisicamente considerada, era um perene desafio á medicina. À sua chegada, o médico dissera que, com muito repouso e cuidados, poderia prolongar um pouco seus anos. Ele, ao invés, passou nove anos numa atividade extraordinária, sem se deixar vencer pela doença.
         Seu espírito de pobreza, extraordinário. Todo o seu vestuário era quase sempre aproveitado de outros que haviam morrido. Aliás, a única exceção de que me recordo era uma batina que, conforme me foi dito, os benfeitores salesianos da cidade, vendo-o andar tão mal trajado, mandaram fazer para ele. No primeiro ano em que o conheci, usava-a raramente e só nos dois últimos anos é que ficou sendo de uso diário.
         Alegrava-se com tudo o que era pobre e inferior e sabia habilmente ver vantagens e qualidades nas coisas mais humildes e mesquinhas. Lembro-me que certa vez esforçava-se por demonstrar a alguém mal satisfeito como a comida fria é tão boa como a quente.
         Não só amava a pobreza, mas sentia-se feliz no meio dos pobres. Como tratava com verdadeira afabilidade os velhinhos do Asilo Santo Antônio! Nos anos anteriores, havia sido capelão nesse Asilo e era queridíssimo por todos.
         Sua pobreza se revelava também na economia que fazia das menores coisas, como, por exemplo, do mínimo pedaço de papel. Escrevendo, usava tantas abreviaturas, que nós dizíamos que ele fazia economia até de letras... Na verdade, aprendi com ele a escrever com abreviaturas, que uso até hoje em notas particulares.
         Detestava, podemos assim dizer, o automóvel, considerado naquela época veículo de luxo, que só os ricos possuíam, porque eram todos importados. Ficou célebre o caso de quando foi receber na estação ferroviária o Pe. Gastão, novo diretor. Sendo muito longe da Av. João Guilhermino, onde ficava nossa casa, sempre se usava o carro de aluguel, como se dizia na época. Feitos os cumprimentos, fez o padre entrar no carro e despediu-se, voltando a pé para casa. Nos casos mais graves, pela distância ou pela urgência, usava a charrete, bastante comum naquela época em São José.
         Seu quarto era o mais pobre e despojado da casa. Sempre úmido, tinha às vezes mau odor pela vizinhança com as instalações sanitárias nem sempre bem higienizadas.
         Dizia-se que ele antes dormia no chão. A carta mortuária fala de que dormia sobre tábuas que pusera no leito. Eu tive ocasião de ver essas tábuas.
         De par com sua pobreza, era seu grande espírito de mortificação. Nunca comia carne. Nunca vi tomar bebida alguma, exceto água, e água comum, nem água mineral. Dizia-se que nem mesmo um dos Superiores Gerais em visita, o Pe. Reineri, conseguira que ele tomasse vinho, bebida diária para os europeus.
         Em todas as refeições era mortificadíssimo, preferindo sempre o que os outros rejeitavam.
         Só saía de casa por motivo de caridade e nunca ia a festas que não fossem na igreja.
         Detestava os títulos, cumprimentos e distinções. Só após sua morte, soubemos de condecorações recebidas na 1ª guerra mundial.
         Nunca saiu de sua boca uma palavra inútil. Nunca um gracejo que não fosse necessário à caridade. Sempre que visse um irmão triste e acabrunhado, se aproximava e começava a falar-lhe. Fora desse caso, ouvia. Nas conversas, não permitia o nome de Deus em vão nem exclamações com o nome de Nossa Senhora.


7. Espírito de fé


      Seu espírito de fé era extraordinário e toda a sua vida era dominada pela fé. Revelava-se sobretudo na sua piedade eucarística. Que profundas reverências ao SS.Sacramento! Quantas horas passadas a sós na capela diante do Senhor! Notável seu amor à liturgia. Acompanhava com interesse as primeiras inovações litúrgicas da época, como a nova tradução do saltério, aprovado por Pio XII naqueles anos.
      Grande apreço a bênçãos, indulgências e favores espirituais.
      Ao ouvir a notícia da morte de alguém, vimo-lo muitas vezes recolher-se um instante e murmurar uma prece por alma do falecido.


8. Amor ao próximo

      Seu amor ao próximo levava-o a fazer os maiores sacrifícios para o bem dos outros. Procurava servir a todos, prestar-lhes obséquios quando necessitados. Não deixava ninguém carregar algum peso, sem imediatamente oferecer-se para ajudá-lo.
      Nunca se furtou às confissões, naqueles tempos tão freqüentes e penosas para os sacerdotes. Entregava-se de corpo e alma a esse árduo trabalho com todo o ardor e dedicação, disposto a se sacrificar até o fim neste apostolado que lhe era tão querido.


9. Humildade

      Junto ao espírito de pobreza e penitência, outra virtude que lhe era característica era a humildade.
      Certo sacerdote, visitando nossa casa, ao se aproximar o Pe. Rodolfo, sem discreção, perguntou-lhe: “O senhor é o padre santo?” O nosso padre respondeu-lhe bem seco: “Não; sou um grande pecador.”
      Nessas ocasiões, via-se como ele tinha um caráter forte com respostas bem secas. Mas sabia dominar-se tão maravilhosamente que não deixava escapar nada que ofendesse à caridade. Se para cumprir o dever ou involuntariamente, causava desgosto a alguém, logo pedia perdão com a frase singela e costumeira: “peço perdão”. Usava-a quando entrava no quarto de algum irmão, quando interrompia uma leitura para perguntar algo, quando, enfim, causava o mínimo incômodo  a alguém.

10. Amor ao estudo

      Seu amor à Igreja e à vocação sacerdotal era o que o dirigia em seus estudos. Apesar de não pensar em sarar nem viver muitos anos, nunca deixou de estudar. Sob a aparência humilde que conservava na conversação, ocultava-se um verdadeiro homem de estudo. Não o admirei como professor, mas tive a ocasião de fazer-lhe várias perguntas sobre filosofia, que naquele tempo andava estudando, e ele sempre me explicava muito bem. Vi-o também ler e traduzir com perfeição o grego do Novo Testamento. Estava sempre lendo um dos volumes de Dogmática do Pesch e outro das Memórias Biográficas de Dom Bosco.
      Reparei freqüentemente que a qualquer pergunta que se lhe fizesse, não respondia precipitadamente, mas pensava um instante antes de o fazer.

11. Características do Pe. Rodolfo

      Excelência Reverendíssima, amigos e irmãos, a esta altura, após a exposição desses fatos das minhas reminiscências, gostaria de agrupar minha experiência pessoal do contacto com o Pe. Komórek, em alguns aspectos que julgo mais salientes de sua personalidade.

      1º - Coerência – Uma virtude que é básica na vida do Pe. Rodolfo, virtude que é apregoada em nossos tempos como imprescindível para o homem moderno: é a autenticidade. A vida moderna está a exigir do homem de hoje uma absoluta coerência consigo mesmo, coerência de seu modo de agir e de falar com os princípios norteadores de sua existência, com sua maneira de pensar, enfim, com sua cosmovisão.
      Rodolfo Komorek levou este princípio às últimas conseqüências em seu modo de agir e de portar-se nas mais variadas circunstâncias.

      2º - Fé visível – Essa coerência era fruto de sua fé, que era visível, diria transparente. Era o testemunho vivo de seu amor ao Cristo. Sua maneira de genufletir, sua postura diante do SS. Sacramento diziam claramente a todos os que o observavam que ele tinha profunda convicção da presença real de Jesus na Eucaristia.

      3º - Pobreza e penitência – Já referi alguns  fatos relativos a esses aspectos de sua espiritualidade, mas quero agora apenas acrescentar que essas duas eram as características que saltavam aos olhos de quem encontrava o nosso Servo de Deus. Pobreza nas vestes, pobreza no quarto, pobreza na alimentação, pobreza no poupar as mínimas coisas.
      Penitente no olhar – olhos normalmente baixos, como se vê em suas fotos mais recentes. Penitente no repouso noturno, no qual realmente não usava a cama, como era evidente a quem entrasse em seu quarto. Penitente no aproveitar as comidas mais rejeitadas pelos outros e menos saborosas.

      4º - Amor aos velhos, aos pobres, aos doentes desprezados – O Asilo Santo Antônio e a S. Casa de Misericórdia desta cidade foram os grandes espaços de sua heróica solicitude para com os últimos dos últimos.

      5º - Caridade para com todos – Pe.  Rodolfo não podia ver ninguém carregar um peso, sem que ele o ajudasse. Testemunhei inúmeras vezes seus atos ou ao menos tentativas de ajudar a quem quer que fosse a carregar qualquer coisa volumosa. Era o cumprimento literal da palavra de São Paulo: “ Ajudai-vos uns aos outros a carregar os vossos fardos e deste modo, cumprireis a lei de Cristo.” ( Gal 6,2)

      6º - Obediência – Vou citar apenas um exemplo, de que participei. O Inspetor de então havia determinado que os Salesianos cortassem os cabelos uns dos outros, por testemunho de caridade e economia. Aqui, em S,José, os salesianos, porque enfermos, se consideravam dispensados dessa obrigação e vinha regularmente um barbeiro prestar esse serviço à comunidade. Pe. Rodolfo interpretava que a lei era válida também aqui, pois havia determinação escrita nesse sentido. Assim, pouco depois que aqui cheguei, fui surpreendido por ele apresentando-me os instrumentos de cortar cabelos e pedindo-me para  “aperfeiçoar” dizia ele. Já havia iniciado sozinho o corte do próprio cabelo. Cabia-me a tarefa de completar apenas. Assim, me tornei seu barbeiro por aqueles três anos, evidentemente pedindo-lhe que eu mesmo começasse e conduzisse até o fim a “artística” tarefa, da qual eu tinha limitada experiência no Seminário.

  7º - Humildade – Juntamente com a pobreza e a penitência, como falei antes, sua profunda humildade transluzia de sua pessoa, de suas palavras, de suas atitudes. Era na coerência de todo o seu ser que ele era sinceramente humilde. Essa humildade transparecia no seu costumeiro pedido de perdão, a que me referi antes, e se posicionar sempre no último lugar.

  8º - Zelo pelo bem dos irmãos – Sua fé ardente o impulsionava a só valorizar o espiritual, desprezando a matéria. Mas nem por isso deixava de recomendar aos irmãos de cuidar bem da saúde. Dedicava-se aos outros com todas as suas forças, com suas últimas forças físicas ,sobretudo à santificação dos irmãos.

  9º - Uma palavra sobre a sua Missa. Que missa, meus irmãos! Que ato de fé  e de piedade sacerdotal, à imitação de nosso Pai Dom Bosco! A frase que se encontra no quarto mortuário de S. João Bosco se realizava plenamente no Pe. Komórek: “Sacerdote, celebra a tua S. Missa sempre – como se fosse a primeira; como se fosse a última; como se fosse a única.” No seu último ano de vida, estando em casa, celebrou até o último dia. Sua fraqueza era tal que, fazendo a primeira genuflexão no degrau sem  apoio do altar, não tinha mais forças para levantar-se e só apoiando as mãos no chão, é que podia erguer-se. Foram realmente heróicas suas últimas missas, posso asseverá-lo.

  10º -  Conceito de santo – Há inúmeros testemunhos de tal conceito que são por demais conhecidos. Por toda parte por onde andou, recebeu o título de  “o padre santo”. O mais interessante é essa afirmação partir das crianças e dos pequeninos. Ouvi dos meninos do Oratório Festivo perguntarem ingenuamente num sábado, à tarde, ao Padre Gastão, nosso diretor: “É aquele padre que está ficando santo quem vem celebrar a missa para a gente amanhã?”
      Este conceito se acentuou à sua morte e cresce sempre mais no meio do povo.


12. Os  “pequenos atos”

      Amigos e irmãos, admiradores de Rodolfo Komorek: acho que a santidade do Pe. Rodolfo está sintetizada naquela frase que alguém colocou num santinho, com um autógrafo seu:
      “A santidade se compõe de uma multidão de pequenos atos.”
      Aí está todo o Pe. Rodolfo – nos pequenos atos, atos de cada dia, atos de sacrifícios incríveis, atos de pobreza, humildade, penitência e zelo, de construção dia a dia da santidade que hoje lhe admiramos e veneramos.


13. Uma carta – testemunho

      Permitam-me, amigos, apesar do tempo que já vai longo, reler para vocês a carta derradeira que ele escreveu ao seu irmão Roberto, dois anos antes de sua morte, relatando sua vida desde que deixara a Polônia. É profundamente reveladora de todo o seu rico interior.
      Ei-la em seus trechos mais importantes:
      “Caro irmão:
      Não estou nem mal, nem muito bem; assim como agrada ao Senhor. Depois de uma temporada bastante longa no sul, nos Estados do Rio Grande e santa Catarina, na colônia habitada por europeus e seus descendentes, depois de alguns anos passados na cidade de Niterói e em Lavrinhas, há 7 anos que vivo na cidade climatérica de S. José dos Campos, no Estado de S.Paulo. Os meus pulmões estão muito debilitados. Não sou mais capaz de viajar, nem de trabalhar no serviço desejado das almas. Confesso um pouco, administro os sacramentos aos doentes, celebro a Santa Missa uma vez nesta, outra vez naquela capela ou igreja, e espero na misericórdia de Deus. Ou Ele ainda me restituirá as forças e a saúde para que possa ser útil, ou me chamará à eternidade, talvez dentro em breve.”
      Depois de descrever um pouco a cidade de S.José dos Campos ele continua:
      “Os Salesianos têm aqui uma pequena residência  com capela particular.  (...) Também eu habito aí e ajudo, porém muito pouco. Não penso mais em voltar para a Europa. Para quê? Isto não seria para a glória de Deus. O céu está a igual distância daqui como daí. ( ...) No céu nos tornaremos a ver. Então nos contaremos mutuamente quanto nos aconteceu nos anos vividos durante a separação. Junto de Deus, na companhia da Santíssima Virgem e dos santos, seremos felizes.
      Perseveremos na esperança da Divina Providência e em Maria Auxiliadora dos Cristãos.
      Teu Rodolfo.”


14. Resposta a uma objeção

      Uma observação final gostaria de fazer aqui, respondendo à objeção que é feita comumente aos episódios mais notáveis da vida de Rodolfo Komorek.
      Alguns consideravam e ainda hoje há quem considere o seu um procedimento estranho e esquisito, sobretudo nos aspectos da pobreza e da penitência.
      A resposta não é difícil.
      Todas as atitudes do Pe. Rodolfo em cada circunstância de sua vida decorrem da absoluta coerência de sua opção pelos valores do espírito, fluem da radical escolha do sobrenatural, do eterno, do transcendente, em oposição ao que é material, efêmero e transitório.
      A outra resposta que podemos dar à objeção citada é que, ao longo da história da Igreja, muitos santos apresentaram  comportamentos, reprovados pelos seus contemporâneos, porque considerados esquisitos e quase  fora da normalidade.
      O que acontece é que, acomodados aos critérios do mundo, vítimas do bem-estar, do eficiente e do produtivo, não entendemos nunca o Santo, que marcha contra a corrente, que age contra o habitual, o comum, o aprovado pela sociedade de consumo e prazer, em que vivemos.


15. Conclusão      

      Excelência, amigos e irmãos,
      A luminosa figura do Pe. Rodolfo Komórek, o “padre santo” o penitente  austero, ilumine o nosso caminhar para que sejamos cristãos verdadeiros, vivendo com coragem o Evangelho pura e simplesmente, filhos do santo Dom Bosco, em cuja escola se formaram heróis de santidade, como o nosso Pe.Rodolfo.
                                                                                                                         Obrigado.

S. José dos Campos, 11 de outubro de 1980
Centenário do nascimento do Pe. Rodolfo Komórek.