“Que as anotações pessoais sejam queimadas. Peço
que vele sobre isso o padre Stanislaw, a quem agradeço pela colaboração e ajuda
tão prolongada através dos anos” – escrevia S. João Paulo II em seu testamento
de 6 de março de 1979. “Não queimei as anotações de João Paulo II, porque elas
são a chave para compreender sua espiritualidade, aquilo que é mais íntimo no
homem: sua relação com Deus, com os outros e consigo mesmo”- explicou o hoje
Cardeal Estanislau Dziwisz, arcebispo de Cracóvia, no prólogo de um alentado
volume de 638 páginas, publicado no Brasil este ano pela Editora Planeta. No
prefácio desse livro, que tem por título “Estou nas mãos de Deus” , informa o Padre
Jan Machniak que as anotações espirituais revelam ao longo de dezenas de anos
(1962 a 2003) a profundidade de trato com Deus de Karol Woytila – bispo
auxiliar, arcebispo de Cracóvia, cardeal e papa. E acrescenta: “Nos últimos
anos, as anotações dos exercícios espirituais tornaram-se cada vez mais breves.
O Santo Padre anotava o tema do retiro e o programa do dia. Há menos
observações pessoais.”
No Vaticano, houve quem criticasse a atitude de
Dziwisw de não cumprir a determinação de seu amigo e protetor, que tinha nele
absoluta confiança, pelas décadas que esteve ao seu lado, como secretário
particular, desde bispo auxiliar em
Cracóvia até Papa em Roma. Acontece que em qualquer processo de beatificação –
e eu participei como testemunha no processo do Padre Rodolfo de S. José dos
Campos – todos os discursos, cartas e quaisquer escritos do candidato às honras
dos altares são cuidadosamente examinados pelos juízes da Congregação romana para
as Causas dos Santos. Entre eles, está o famoso Defensor da Fé, que jocosamente
é chamado de “advogado do diabo”, porque lhe incumbe a árdua tarefa de
descobrir se há algum erro ou deslize nos escritos e no comportamento do
proposto a ser declarado santo pela Igreja. A destruição de qualquer documento,
como esse de João Paulo II, seria altamente suspeita. Por isso, Estanislau
Dziwisz, secretário de João Paulo II, entregou suas anotações pessoais à
Congregação para as Causas dos Santos.
O tesouro
espiritual que fica nessas páginas é de valor inestimável. Começa em 1962,
quando ele era bispo auxiliar e vai até o retiro espiritual de 2003, perto de
sua morte. Ele “cruzou o limiar da esperança” às
21:37 do sábado da semana de Páscoa, 2 de abril de 2005.
Pelo reduzido
espaço de que disponho, vou limitar-me a poucas citações. No retiro de 1962, em
preparação ao Concílio: “Estou nas mãos de Deus – o conteúdo daquele Totus Tuus (Todo teu) apareceu com em um
novo lugar. Quando qualquer assunto meu se transforma, assim, em propriedade de
Maria, é possível enfrentá-lo, mesmo que isso implique um risco.” No retiro de
1964, arcebispo de Cracóvia: “Redirecionamento
do retiro à santíssima humanidade de Cristo e portanto, à sua Mãe –
calem-se os doutores, um é o Mestre: Cristo. Retrocedam as criaturas, fala-me
só Tu. Sobre a kénosis (esvaziamento) ou seja sobre a destruição
do amor próprio como condição para essa escuta durante o retiro.” No retiro de
1983, pregado pelo Card. Ratzinger, ele rezava: “Ao celebrar mais uma santa
Quaresma, concedei-nos avançar na inteligência do mistério de Cristo e vivê-lo
em sua plenitude” e refletia: “Indo para o deserto, Jesus penetra na história
de seu povo, em seu caminhar e em suas tentações no deserto. Assim, os
sacerdotes de hoje terão de marcar o caminho através do deserto da
modernidade.” No retiro de 1986, pregado pelo Reitor Mor dos Salesianos, Pe.
Viganò: “A santidade (vida no Espírito, vida de fé, esperança, caridade)
concentra-se definitivamente no amor: amor de Deus e do homem, inseparáveis.
Amor pastoral. O caminho do amor é o homem. Deus, para revelar seu amor, fez-se
homem, pobre. Cristo, fonte desse amor.” O último retiro que ele anotou foi o
de 2003.
O livro citado
reproduz a última página da agenda escrita por Karol Wojtyla, com essas
palavras: “Jonas, ou seja, o medo de anunciar o amor de Deus.”